Releitura de personalidade

Tão megalomaníaco quanto seu protagonista, O Grande Gatsby, do australiano Baz Luhrmann, é tudo o que se espera de um autêntico exemplar da sua filmografia
 

Clássico americano por excelência, O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, é uma crítica direta à sociedade perdulária, ao sonho americano e ao ideal romântico dos EUA da década de 1930. Não é por menos o estranhamento que causa a associação de um material como esse nas mãos de Baz Luhrmann, um diretor assumidamente (e deliciosamente) refém do espetáculo visual, das referências híbridas e da não economia no orçamento em prol de suas empreitadas (basta vermos sua filmografia composta por verdadeiras hipérboles cinematográficas como Vem Dançar Comigo?, Romeu + Julieta, Moulin Rouge! e Austrália). No entanto, não dá para imaginar outro diretor que consiga apropriar-se de um material tão forte quanto este a ponto de esquecermos do seu referencial, e isso é ótimo. Mas, claro, O Grande Gatsby trata-se de um gosto adquirido, já que Luhrmann é o tipo de cineasta que não estabelece barreiras, levando até as últimas consequências seu projeto de cinema. Assim, O Grande Gatsby é uma releitura, muito mais do que um filme baseado no livro de Fitzgerald. É a leitura que Baz Luhrmann, cineasta do videoclipe, do kitsch, pop, melodrama, do pastiche, faz do universo de Gatsby.

A história de O Grande Gatsby é narrada por Nick Carraway, aspirante a escritor que fica instigado com a  figura do seu vizinho, Jay Gatsby, um playboy conhecido por tornar sua mansão espaço para algumas das festas mais comentadas de Long Island. Carraway acaba descobrindo que tudo não passa de um disfarce de Gatsby para atrair o grande amor da sua vida, Daisy Buchanan. Jay e Daisy se conheceram às vésperas da Primeira Guerra Mundial e seguiram caminhos opostos. Daisy se casa com o aristocrata racista Tom Buchanan, enquanto Gatsby desaparece após o fim da guerra sem dar maiores notícias do seu paradeiro à amada.

Luhrmann segue a tradição de sua filmografia e O Grande Gatsby é um filme para o grande ecrã, uma verdadeira raridade em uma temporada dominada por blockbusters de ação. O Grande Gatsby não deixa de ser um filme para as grandes plateias (um pecado assistir a esta produção de qualquer outra forma que não no cinema), mas é um produto diferenciado, um blockbuster dramático. Em 3D, então, a experiência é inesquecível. Baz foi feito para isso. Aliás, tudo em sua carreira apontava para esse caminho.
 
O realizador australiano, a despeito de ter um ego maior até do que a escala dos seus filmes (um daqueles casos em que a gente infelizmente tem que dar o braço a torcer), realiza aqui não apenas o espetáculo visual esperado pelo esmero de sua esposa Catherine Martin na direção de arte e nos figurinos, mas também o filme mais engajado da sua filmografia, com fatores que vão além da apreciação estética. E ainda que seja um terreno relativamente novo ao realizador e algo ainda permaneça na superficialidade, Luhrmann se esforça na condução dos temas que O Grande Gatsby levanta. A crítica à sociedade da opulência, do consumo, das emoções superficiais e da segregação continuam ali,  é a essência de Gatsby, mas nada panfletário. A preocupação de Luhrmann é abordar essas questões sob um ponto de vista humano, tornando o desfecho de Gatsby uma reflexão sobre os parâmetros de valoração que estabelecemos para nossa própria vida. Assim, O Grande Gatsby tem um objetivo, uma meta, e não torna-se um projeto disperso como Austrália, filme anterior do diretor.


Para dimensionar o universo contruído por Fitzgerald para as plateias do século XXI, Luhrmann transforma as festas de Gatsby em verdadeiras raves e substitui o jazz pelo ryhthm blues e pelo hip-hop, mas um hip-hop que preserva arranjos típicos do período no qual a história é originalmente ambientada. E, no "departamento musical", a "mistureba" de Luhrmann não tem limites, Lana Del Rey canta Beyoncé, Beyoncé canta Amy Winehouse e Jack Black canta U2, todos numa mescla de poprock e foxtrot. Enfim, não vou me alongar porque não é minha especialidade, mas tudo muito harmônico com o conceito do filme, portanto, uma das trilhas que só faz sentido com o longa, assim como O Grande Gatsby só faz sentido com a trilha. Se o tratamento musical é fundamental para captar Fitzgerald e dimensioná-lo para as novas gerações, elementos como direção de arte e figurinos potencializam o contexto, seus personagens e a abordagem de Luhrmann. Catherine Martin, esposa do cineasta, como de praxe (sempre cuidou desse departamento em seus filmes, sendo apontada inclusive como a mente por trás de seus projetos) não economiza em cores e detalhes nos figurinos e cenários que esbanjam excentricidade.
 
Um raro caso na filmografia de Luhrmann, O Grande Gatsby apresenta ótimos desempenhos de todo o seu elenco. Se em Moulin Rouge! ou Romeu + Julieta os esforços estavam no casal principal, aqui todos tem a oportunidade de mostrar seus potenciais dramáticos, obviamente por ser o roteiro com tratamento mais multidimensional de personagens que Luhrmann já dirigiu. Leonardo DiCaprio está mais uma vez eficiente. Demonstrando uma expectativa adolescente em torno de seu romance com Daisy,  Gatsby vive os 32 anos como se ainda tivesse 16, tentando fazer de tudo para impressionar a amada, a quem trata como uma entidade inatingível. Carey Mulligan, por sua vez, tem uma das missões mais difíceis entre os atores do longa, manter a dubiedade e a inconstância de uma heroína que tem muito a dizer por trás da imagem de dondoca fútil. Na pele de Daisy, Mulligan transforma a fragilidade de sua personagem em um subterfúgio que utiliza para fugir de sua responsabilidade com o outro e com a realidade. Fruto do seu tempo e da sua criação, Daisy parece mais suscetível a escolher entre Tom ou Gatsby a partir da redoma que eles a ofertam, muito mais do que por sentimentos genuínos que sinta por um ou por outro. Outra presença interessante no longa é Tobey Maguire, os olhos do espectador que procura entender a natureza de cada um desses personagens gradualmente. Apesar de ser um espectador passivo, as reflexões de Nick Carraway são a razão para O Grande Gatsby existir. Além do trio, Joel Edgerton está impecável como o vilão Tom Buchanan, e  Isla Fisher tem uma presença pequena, mas eficaz como a amante de Buchanan, Myrtle.
 


 E se Baz Luhrmann é novamente berrante e histriônico em O Grande Gatsby é sinal de que ele é um diretor fiel a sua própria gramática cinematográfica, uma qualidade cada vez mais rara no cinema comercial, o cinema dos estúdios, do qual faz parte abertamente. Que diretor consegue manter-se assim durante anos sem flertar com a pasteurização inerente ao processo produtivo industrial? Baz é um dos poucos. Como julgar seus filmes por aspectos que são marcas latentes do seu cinema e o distingue dos demais? Luhrmann é coerente e jamais abandona o seu estilo, pelo contrário, vai fundo e assume seus exageros e hibridismos até as últimas consequências. É assim que ele enxerga o mundo e foi assim que aprendemos a amar o seu cinema. É assim que ele enxerga Fitzgerald e seu Gatsby, um material do qual corajosamente se apropriou e não se intimidou.
 

 
The Great Gatsby, 2013. Dir.: Baz Luhrmann. Roteiro: Baz Luhrmann e Craig Pearce. Elenco: Leonardo DiCaprio, Tobey Maguire, Carey Mulligan, Joel Edgerton, Isla Fisher, Jason Clarke, Elizabeth Debicki, Amitabh Bachchan, Emmanuel Ekwenski. 142 min. Warner.

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Chovendo Sapos: Releitura de personalidade
Releitura de personalidade
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