Estreando em uma produção estrangeira com Segredos de Sangue, o sul-coreano Chan-wook Park questiona a natureza da violência. Predestinação ou escolha?
Difícil enquadrar Segredos de Sangue em qualquer gênero cinematográfico. Terror? Não, passa longe. Drama? Talvez. Suspense? Possivelmente o que mais chega perto da proposta de Chan-wook Park, mas ainda assim seria reducionista sufoca-lo em "caixinhas". Em virtude dessa indefinição, o filme não encontrou seu público nos EUA. Uma verdadeira sina para projetos como esse, o público quer ter a segurança do que vai ver na tela, garantias, e Segredos de Sangue não dá garantia alguma a sua plateia, apenas a de que assistirá a um filme intrigante com a assinatura de um cineasta comprometido em desconstruir qualquer expectativa.
Roteirizado por Wentworth Miller (sim, o protagonista de Prison Break, que inicialmente enviou o roteiro aos estúdios com um codnome), Segredos de Sangue conta a história de India, uma adolescente que é surpreendida pela morte de seu pai quando está prestes a completar 18 anos. A transição para a vida adulta da protagonista colide com sua habitual introspecção e melancolia, características potencializadas pelo luto familiar e pela difícil relação que India mantém com sua mãe, Evelyn, a única pessoa a quem naturalmente poderia recorrer em um momento crítico como esse que está vivendo. Segredos de Sangue nos mostra uma família disfuncional cuja história cercada de mistérios começa a vir à tona com a chegada e Charlie, tio de India que interrompe sua vida nômade para ajudar a garota e sua mãe Evelyn a enfrentar a perda do patriarca, Richard Stoker.
Chan-wook Park não nega as origens e mantém-se preocupado em oferecer soluções visuais interessantes para os roteiros que dirige, conduzindo sua trama e a dinâmica entre os personagens através de camadas, interpretadas gradualmente pelo espectador. Park confere uma atmosfera hitchcockiana com diversos twists que pegam a plateia de sobressalto, até aqueles mais "espertinhos" (a referência a Hitchcock é mais direta em Sombra de uma Dúvida, que, por sinal tinha um plot que girava em torno de uma mulher às voltas com o retorno de um misterioso tio chamado Charlie, mesmo nome do personagem de Matthew Goode), e personagens neuróticos, sedutores e perigosos. Seus movimentos de câmera e a fotografia aplicada não são aleatórias, conferindo tom soturno, perigoso e uma tensão constante, sobretudo no intrigante triângulo incestuoso que tem como vértices India, Charlie e Evelyn.
Não que duvidasse do talento de Wentworth Miller - talvez sim, é humano questionar a capacidade das pessoas -, mas jamais poderia imaginar que ele pudesse criar um roteiro tão engenhoso, perturbador e envolvente quanto o de Segredos de Sangue. Seus diálogos são sugestivos e ditos na tela por um elenco afiado e harmônico. Mia Wasikowska compreende a complexidade da personalidade de India, sempre introspectiva e distante, como mecanismo de defesa e forma de expressão. A jovem está a procura de uma identidade e completamente perdida por não ter mais a referência de seu pai, a peça mais equilibrada da família. Inicialmente, a personagem conta apenas com a companhia de Evelyn, com quem não consegue estabelecer uma relação mais próxima em virtude da mãe estar sempre anestesiada por antidepressivos, algo apenas sugerido no longa. Existe uma tensão na relação mãe e filha, uma rivalidade feminina, que Wasikowska consegue criar muito bem em parceria com Nicole Kidman. A australiana (segunda do filme porque Mia também é de lá), por sinal, consegue fazer muito com uma personagem discreta, mas sempre presente. Evelyn é uma mulher carente, insegura e emocionalmente instável que não consegue lidar com as demandas de comandar a sua própria vida, casa e criar a sua filha. Nicole consegue encontrar o tom certo da personagem sem oferecer muito da sua natureza logo de cara e evitando tonalidades mais fortes em sua composição.
No entanto, a interpretação mais surpreendente do longa fica por conta de Matthew Goode, que substituiu de última hora Colin Firth no papel do tio Charlie. Sedutor e manipulador, Goode interpreta um sujeito que obviamente está escondendo algo de India e Evelyn, tendo pretensões muito mais obscuras do que diz ter desde o início do longa. O personagem utiliza artifícios de dissimulação para mostrar a Evelyn que pode ser o equilíbrio que ela tanto procura. Mais do que Evelyn, Charlie quer conquistar India, amenizar sua angústia de sentir-se deslocada socialmente, tudo o que uma adolescente procura. Imediatamente, o personagem instaura o caos e a rivalidade na relação entre mãe e filha. Dessa forma, Goode cria um tipo que gera calafrios, mas que causa um inegável fascínio, característica inerente aos melhores psicopatas do cinema.
Tentar desvendar a trama de Segredos de Sangue, contudo, implica adentrar nas reviravoltas do longa, portanto serei cauteloso. Em resumo, o filme expõe ao espectador sua teoria sobre o nascimento do mal ou o "desabrochar" das personalidades doentias, no caso de India, não por acaso, justamente na transição da adolescência para a fase adulta. Wentworth Miller e Chan-wook Park são claros, até mesmo na narração da protagonista no início do filme, certas características são alimentadas no seio familiar outras correm nas nossas veias e se manifestaram em nossos antepassados. No entanto, a própria decisão tomada pela protagonista no terceiro ato evidencia a relativização desse conceito pelos realizadores. A violência nasce em meios propícios a ela, uma espécie de vírus contagioso. Portanto, nem predestinação nem livre arbítrio, mas o meio. Violência gera violência. O mal é estancado pelo próprio mal.
E há quem diga que trata-se de um Chan-wook Park pasteurizado... Acusação óbvia para qualquer trabalho em língua inglesa de um diretor "estrangeiro". Park dirige um roteiro que não foi escrito por ele, natural que exista um estranhamento entre esse longa e o restante da sua filmografia até aqui. Mas Segredos de Sangue não é um filme de estúdio e certamente não contou com mandos e desmandos mais invasivos de empresários interessados em torná-lo mais palatável, mesmo porque se a intenção foi essa, o tiro saiu pela culatra. Mesmo que esteja distante da veemência de filmes como Oldboy, Lady Vingança, Mr. Vingança e Sede de Sangue, Segredos de Sangue tem inúmeras qualidades que merecem ser reforçadas. Entre elas, deixar que seu diretor conduza a história da maneira que bem entenda, dando sua interpretação para aquela trama e deixando bem claras suas marcas como realizador. Passa longe da padronização narrativa que os xiitas cansativamente costumam alegar para casos como o seu. Coisa de gente chata! Segredos de Sangue fala por si só.
Stoker, 2013. Dir.: Chan-Wook Park. Roteiro: Wentworth Miller. Elenco: Mia Wasikowska, Matthew Goode, Nicole Kidman, Jacki Weaver, Phyllis Somerville, Alden Ehrenreich, Lucas Till, Dermot Mulroney, Ralph Brown, Tyler von Tagen, Thomas A. Covert. 99 min. Fox.
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