Revisitando: Longe do Paraíso


Longe do Paraíso é um dos filmes mais queridos da minha prateleira. Não só por praticamente ter sumido de circulação (muito em virtude da breve vida de sua distribuidora aqui no Brasil, a Casablanca Filmes), mas também por ser protagonizado por uma das atrizes mais incríveis do seu tempo, Julianne Moore (e se você a conhece apenas por Hannibal Leis da Atração, corra para assistir coisas mais dignas na sua filmografia), por ser dirigido pelo inventivo Todd Haynes (aqui em sua fase pré- Não estou lá e Mildred Pierce), por pertencer a uma safra interessantíssima do cinema norte-americano (a de 2002), por colocar em prática belissimamente a metalinguagem ao escolher os melodramas da década de 1950 como formato, pela relevância no tratamento de temas ainda delicados no cinema como a homossexualidade e o preconceito racial... Enfim, por inúmeros motivos.

Para quem desconhece, Todd Haynes é um diretor do circuito independente dos Estados Unidos com uma filmografia diversificada ao extremo. Na ocasião em que concebeu Longe do Paraíso, Haynes tinha acabado de virar sensação no mercado alternativo com Velvet Goldmine, fita de 1998 com Ewan McGregor, Jonathan Rhys-Meyers e Christian Bale que explorava o universo do glam rock. Inspirado nos típicos melodramas de Douglas Sirk, filmes que tinham marcações bem específicas, como veremos adiante, Haynes criou o roteiro de Longe do Paraíso e levou-o para as telonas com o aval de gente graúda como George Clooney e Steven Soderbergh, que se tornaram os produtores executivos da fita. O filme causou furor no Festival de Veneza do seu ano de lançamento e levou para casa o prêmio de melhor atriz para o desempenho de Julianne Moore.


Douglas Sirk foi um diretor de cinema alemão que acabou consagrando-se nos Estados Unidos por definir o clássico melodrama hollywoodiano. Suas histórias eram sempre contadas sob o ponto de vista de donas de casa da classe média que sofriam os preconceitos da época por romperem com convenções e preconceitos da sociedade. Mas não era só na temática e na definição de seus personagens que os melodramas norte-americanos se diferenciavam de seus pares. Determinadas opções estéticas, como a fotografia e a direção de arte que explorava muito bem a disposição de cores por frame, ou de movimentos de câmera e montagem, sempre suaves e com pouquíssimos cortes, são características do sub-gênero, bem como a orientação na interpretação dos seus atores e as sutis ironias sugeridas ao longo da projeção.

Todd Haynes utilizou a premissa de Tudo o que o céu permite, filme de Douglas Sirk de 1955, protagonizado por Jane Wyman, para compor um dos principais conflitos de Longe do Paraíso. A trama do filme de 1955 girava em torno de uma viúva que começa a se envolver com seu jardineiro, vivido por Rock Hudson, e escandaliza a sociedade conservadora da época. Outro longa que inspira Haynes em Longe do Paraíso é Imitação da Vida, último melodrama de Sirk, desta vez protagonizado por Lana Turner, que vivia uma atriz que contrata os serviços de uma negra como empregada doméstica. As personagens acabam compartilhando os dramas vividos com suas respectivas filhas e se tornam grandes amigas. Imitação da Vida tratava sobre a questão racial, um dos temas centrais de Longe do Paraíso


No filme de Haynes, a protagonista é Cathy Whitaker, uma dona de casa que vive uma vida modelo no Connecticut: um casamento estável, filhos saudáveis, uma casa muito bem administrada, uma vida social intensa... Toda essa perfeição artificial, uma das marcas do melodrama e da vida de muitas famílias classe média da época, esconde a insatisfação de Cathy com seu casamento. O modelo da família feliz sustentado pela protagonista sofre um abalo após a revelação de que seu marido é homossexual. A partir desse momento, Cathy passa a manter uma amizade com seu jardineiro Raymond Deagan, uma aproximação que acaba não sendo bem vista por seu círculo de amigos por Deagan ser negro.

O que Haynes faz brilhantemente bem em Longe do Paraíso é inserir esses "corpos estranhos", ou seja, novos elementos, no melodrama, mantendo-se fiel à linguagem visual e narrativa do gênero mas fazendo uma grande releitura. Apesar do tom contestador e levemente feminista desses filmes, muita coisa era silenciada ou tratada com muita discrição e parcimônia. Haynes traz um olhar atual para o formato  através de uma abordagem séria e contundente sobre a intolerância silenciosa a homossexuais e negros na década de 1950. Uma intolerância que fez proliferar uma geração de lares infelizes e marcados pela frustração de anseios pessoais não realizados em função do medo de represálias sociais. Salienta-se: apesar de tudo que vivemos hoje - sim, o preconceito ainda existe e homossexuais enrustidos como Frank Whitaker estão aos montes por ai, levando suas esposas a uma vida de aparências e infelicidade - , nada se compara àquele época. Aliás, o maior medo dos tempos atuais é que voltemos aquele estado de coisas  asfixiantemente conservador, cujo discurso se prolifera de forma muito sutil e perigosa em determinados grupos que não têm vergonha alguma de condenar pessoas por características que lhes são intrínsecas (a mulher, o negro e o homossexual). Por que uns têm mais direitos de existir, de ser o que são, do que outros? Uma pergunta que me faço até hoje.


Além do direcionamento cirúrgico de seu roteiro (preciso, discreto e eficiente), Haynes tem uma condução exemplar nesse filme, mostrando que se aprofundou sobre o gênero  em aspectos técnicos e narrativos. Não há um só detalhe que escape aos olhos do diretor, um vacilo sequer. Desde os créditos iniciais, que seguem a tradição da década de 1950; passando pela fotografia, figurinos, direção de arte e iluminação, que harmonizam cores até mesmo em ambientes naturais; finalizando o apuro com uma certeira montagem, também sabiamente comprometida com o gênero.

Julianne Moore está em uma de suas melhores performances. Indicada ao Oscar de melhor atriz por este desempenho (no mesmo ano concorreu por As Horas, como atriz coadjuvante, e curiosamente sua personagem lá vivia o mesmo drama de Cathy, e na mesma época, só que invertem-se os papeis e a Laura Brown do filme de Stephen Daldry toma uma decisão muito mais corajosa que o personagem de Dennis Quaid aqui), Moore cuida milimetricamente de cada passo dado por Cathy, desde a artificialidade com que mantém seus relacionamentos e sufoca seus verdadeiros anseios, até o momento em que começa a tomar consciência de sua própria realidade. O castelo de cristal da personagem desmorona e Moore domina todas as mudanças sofridas por ela até chegar a esta constatação. Igualmente brilhante está Dennis Quaid que vive um homem sufocado pela culpa nutrida por sua condição. Frank tem vergonha de sua homossexualidade e começa a se enganar achando que pode "curá-la" ou conviver secretamente com ela. No entando, o personagem não consegue sustentar a infelicidade de seu casamento tão bem quanto Cathy. Todas essas variações de humor e sutilezas de intenção do personagem são conduzidas com perfeição por Quaid em um desempenho que merecia ter rendido uma indicação ao Oscar para selar as quatro nomeações que o filme recebeu naquela edição do prêmio (melhor atriz, roteiro original, fotografia e trilha sonora original). 


Longe do Paraíso é um dos raros casos em que a metalinguagem não transforma o filme em um grande engodo artificial. O artificialismo aqui é empregado com ironia e melancolia, apontando as ranhuras daquela sociedade e dimensionando o drama de sua protagonista, uma mulher cujo destino inevitável é a infelicidade. Todd Haynes não contempla simplesmente um gênero cinematográfico, nem edifica-o a ponto de não conseguir identificar suas próprias falhas proporcionadas pelo tempo. Pelo contrário, em Longe do Paraíso o diretor utiliza o melodrama por entender que como narrativa cinematográfica não há forma melhor de expor a condição de minorias em uma sociedade opressora que sufoca indivíduos em vidas completamente artificiais, ocas, ou seja, vidas de aparências. Tudo foi escolhido a dedo: o melodrama, a década de 1950 (não localizando o preconceito como um problema daquela época, mas o período é utilizado para tornar mais explícito os temas e também por se encaixar na narrativa melodramática) e os grupos oprimidos (uma mulher, um homossexual e um negro), todos completamente castrados e impossibilitados de viverem em plenitude. Longe do Paraíso, o filme, a genuína perfeição que sobrevive ao tempo pela pertinência do seu diálogo com o público.

Trailer de Longe do Paraíso




Far from Heaven, 2002. Dir.: Todd Haynes. Roteiro: Todd Haynes. Elenco: Julianne Moore, Dennis Quaid, Dennis Haysbert, Viola Davis, Patricia Clarkson, James Rebhorn, Celia Weston, Ryan Ward, Lindsay Andretta, Bette Henritze, Michael Gaston. 107 min. Casablanca Filmes.

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Chovendo Sapos: Revisitando: Longe do Paraíso
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