O matador e a coxa de frango

Deixando para trás as férias remuneradas de mais de uma década, Matthew McConaughey revela-se um grande ator e é a atração de Killer Joe


Um dos principais representantes da escola de diretores norte-americanos da década de 1970, William Friedkin ganhou notoriedade ao dirigir trabalhos como O Exorcista,  representante definitivo do gênero horror, e Operação França, pelo qual venceu o Oscar de melhor diretor em 1972. Nas décadas de 1980 e 1990 dirigiu alguns trabalhos com menor expressividade e repercussão, retornando nos anos 2000 com uma nova faceta. Em 2007, Friedkin apresentou Possuídos para as plateias de Cannes, um drama paranóico centrado na dupla Ashley Judd e Michael Shannon, baseado em uma peça do dramaturgo Tracy Letts, e roteirizado pelo próprio autor do original. O filme ganhou o boca a boca e conseguiu alguns admiradores, sobretudo pela performance de Ashley Judd, que nunca esteve tão intensa em cena. Friedkin retoma essa parceria agora em Killer Joe - Matador de Aluguel e dessa vez o fator surpresa é ninguém mais, ninguém menos que o eterno descamisado das comédias românticas Matthew McConaughey.

O filme conta a história de uma família texana cujo filho mais velho, Chris (Emile Hirsch), contrai uma dívida com traficantes e tem uma ideia completamente reprovável para quitá-la. Após saber que sua mãe fez um seguro de vida no nome de sua irmã equivalente a U$ 50 mil, Chris contrata um assassino profissional que trabalha como detetive na polícia local, o Killer Joe (Matthew McConaughey), para matar a matriarca. No entanto, o plano não sai como esperado e Chris passa a ser alvo não apenas dos traficantes como do matador contratado. 

Com doses cavalares de humor negro, o roteiro de Tracy Letts revela todas as fragilidades de uma família disfuncional, na qual qualquer demonstração de afeto é estranhamente confundida com a necessidade de sobrevivência, o "salvar a própria pele". O dramaturgo mais uma vez demonstra todo o seu cuidado com o tratamento de seus personagens e com a dinâmica cênica em momentos pontuais, acertando ao concentrar toda a ação final do filme em um único cenário, tornando tudo ainda mais tenso, sufocante e sujo. A exemplo do que fez em Possuídos, William Friedkin interfere o mínimo que pode e deixa-se levar pelo seu roteiro e pelas interpretações de seus atores, todos muito bons em seus respectivos personagens.

Nas mãos do ator Emile Hirsch, Chris traz toda a contradição desse núcleo familiar. Irresponsável e distante da figura materna, o jovem não consegue "bancar" a frieza necessária para sustentar sua própria decisão, demonstrando a instabilidade e imaturidade nata no comando da sua própria vida. Juno Temple é outra que brilha como o ponto aparentemente destoante dessa família, já que Dottie se preserva desse ambiente hostil em meio a redoma que criou para si, materializada em seu quarto repleto de motivos infantis e na  forma como se comporta, um comportamento que gera dúvidas (seria natural ou um mecanismo de defesa) já que a própria acaba se rendendo ao próprio ambiente em que vive no final das contas. Há também Thomas Haden Church, o patriarca tão contraditório em seu caráter quanto o próprio filho, e Gina Gershon, a madrasta manipuladora Sharla. Todos muito bem.

Mas é óbvio que a grande atração de Killer Joe é mesmo Matthew McConaughey, que sabiamente tem utilizado elementos de sua própria natureza a seu favor (o narcisismo em Magic Mike e sua origem texana aqui). McConaughey cria um tipo com intenções soturnas e personalidade bastante doentia para o matador Joe, um sujeito extremamente perigoso pela sua imprevisibilidade e frieza. No ato final, McConaughey toma o filme para si e monopoliza as atenções ao desestabilizar os demais personagens em uma sequência frenética e angustiante que culmina em uma catártica cena envolvendo uma coxa de frango frita.

Mais afeito ao minimalismo, mas jamais deixando de lado a exposição do que existe de pior na natureza humana, algo que faz desde a década de 1970, William Friedkin encontrou nos anos 2000 a solução ideal para a falta de interesse dos estúdios em seus projetos mais "autorais": o roteirista Tracy Letts, que lhe propõe sempre uma observação sobre personagens obscuros sem grandes despesas no processo de execução do filme. Todo o peso e a dramaticidade de O Exorcista, por exemplo, se transformaram em pessimismo irônico em Possuídos Killer JoeA reverberação em bilheteria pode ser menor, mas filmes como Possuídos e Killer Joe reavivaram a carreira de um cineasta essencial na história do cinema norte-americano,  enfim, do cinema mundial, com um envólucro e um processo de execução mais modesto, mas não menos interessante, pelo contrário.

McConaughey antes e depois: em Sahara (esquerda) e em Dallas Buyers Club (direita), com 17 quilos a menos.
Quem te viu, quem te vê!

Não sei se os tempos ao lado de Kate Hudson  em Um Amor de Tesouro cansaram ou foram estratégicos para que ele conseguisse uma estabilidade financeira e pudesse embarcar em empreitadas mais ousadas, mas o fato é que desde o ano passado Matthew McConaughey tem procurado trabalhar com diretores interessantes e assumido riscos em personagens mais complexos que o usual em sua filmografia. Já citamos o caso de Magic Mike, mas, ainda inédito no Brasil e pertencente à safra de 2012, McConaughey trabalhou com Lee Daniels (Preciosa) em The Paperboy, filme que rendeu a Nicole Kidman uma indicação ao Globo de Ouro. O ator ainda tem Mud, exibido em Cannes no ano passado e que rendeu elogios rasgados a sua interpretação nele, dirigido por Jeff Nichols (O Abrigo). Para completar, McConaughey está no novo filme de Martin Scorsese, The Wolf of Wall Street, ao lado de Leonardo DiCaprio, e em Dallas Buyers Club, no qual vive um homofóbico que foi diagnosticado como portador do HIV em 1986. Para este papel, McConaughey emagreceu 17 quilos e já se especula que a consequência de tamanho esforço e dedicação do ator pode lhe render sua primeira indicação ao Oscar em 2014.



Killer Joe, 2012. Dir.: William Friedkin. Roteiro: Tracy Letts. Elenco: Matthew McConaughey, Emile Hirsch, Juno Temple, Thomas Haden Church, Gina Gershon, Marc Macaulay, Gralen Bryant Banks, Danny Epper, Jeff Galpin, Charley Vance. 108 min. Califórnia Filmes.

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Chovendo Sapos: O matador e a coxa de frango
O matador e a coxa de frango
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