Em Um Alguém Apaixonado, Abbas Kiarostami não economiza sua costumeira ousadia narrativa
O iraniano Abbas Kiarostami é um cineasta sádico por natureza. O diretor gosta de levar o espectador para um caminho e dali a meia hora sugerir: "Se você pensava a história por esse ponto de vista, comece a pensá-la por esse outro aqui". E nesse percurso, Kiarostami não economiza em ousadia. O diretor praticamente elimina as elipses, realiza pouquíssimos cortes e não priva sua narrativa de diálogos banais. Afinal, a vida é cheia de banalidades, conversas desconexas, momentos de silêncio... E Kiarostami prefere o cotidiano, o real, ainda que aqui e ali encontre ecos de ficção hiperbólica. Como não poderia fugir à exceção, o novo filme do diretor, Um Alguém Apaixonado, segue a regra de não seguir regras, adotada pelo cineasta desde sempre. E, como não poderia deixar de ser, tudo isso traz como consequência um resultado magnífico. A linguagem cinematográfica utilizada em toda a sua potencialidade.
O filme se passa em Tóquio e conta a história de uma estudante universitária que durante a noite trabalha para uma agência de garotas de programa. Em uma dessas noites de trabalho, seus serviços são solicitados por um professor aposentado que utiliza seu tempo livre para traduzir livros de uma grande editora. A garota em questão tem um noivo que começa a suspeitar da verdadeira história por trás de sua vida dupla.
Roteirizado pelo próprio Kiarostami, Um Alguém Apaixonado tem um grande protagonista: o ator Tadashi Okuno, na pele do senhor que se apaixona pela jovem garota de programa (na verdade, a verdadeira ligação entre ele e a menina é, aos poucos, sugerida ao longo do filme). O personagem de Okuno traz em si toda a concepção do filme. Kiarostami quer falar sobre o amor incondicional, silencioso e zeloso deste homem experiente por uma jovem mulher, um amor que jamais se relaciona com o carnal, apesar de todo o contexto favorecer uma interpretação contrária.
Kiarostami tira o espectador da zona de conforto e da onisciência. O diretor quebra determinadas convenções narrativas, algo que fez muito bem em Cópia Fiel. Quem disse que a gente precisa saber tudo sobre o personagem ou se antecipar à própria história? Em Um Alguém Apaixonado o diretor potencializa essa que seria uma de suas características mais fortes: tirar o domínio que o espectador pensa ter sobre a narrativa que assiste no cinema.
É uma pena que o diretor seja uma grande exceção e que seus filmes não sejam festejados agora da forma como deveriam ser. Mas a trajetória de todo grande transgressor é esta. Um Alguém Apaixonado é mais um formidável e sutil trabalho de um diretor que não se acomoda nem deseja que seu público se acomode e se conforme com a posição passiva de espectador. O cinema que Kiarostami potencializa em Um Alguém Apaixonado é construído pela própria plateia, que não apenas se envolve emocionalmente com a situação vivida por seus personagens (como se isso fosse pouco), como também tangencia seu próprio juízo de valor sobre os acontecimentos na tela. Com Kiarostami, o público tem total autonomia para compreender a narrativa da forma que bem entender, um processo que deixa qualquer "macaco velho" da sétima arte perplexo e até mesmo desorientado, o que é muito bom.
Like Someone in Love, 2012. Dir.: Abbas Kiarostami. Roteiro: Abbas Kiarostami. Elenco: Tadashi Okuno, Rin Takanashi, Ryo Kase, Denden, Ryota Nakanishi. 109 min. Imovision.
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