A causa de todos os males

Fausto, vencedor do último Festival de Veneza, recria o clássico de Goethe para encerrar quadrilogia russa sobre o poder


O último filme da quadrilogia sobre o poder criada pelo russo Alleksandr Sokúrov, em 1999, com Muloch, conclui todas as teorias do cineasta sobre o tema. Com sua adaptação do poema clássico de Goethe, Fausto, Sokúrov coloca toda a imperfeição e a eterna insatisfação do homem, sua ambição, como impulsionadores das maiores desgraças da humanidade. Fausto é o desfecho provocativo de alguns dos principais temas evocados por Sokúrov, desta vez o destaque é o apego do homem com a ciência, utilizando-a como última e incontestável justificativa para atos completamente questionáveis. Além do apego à razão, Sokúrov critica a covardia humana, através de um protagonista que sempre se esquiva da culpa por suas "vilanias".

Em Fausto, o personagem-título firma um acordo com Mefisto, visto aqui como uma espécie de agiota, mas que é na essência o diabo. Médico, Fausto anseia por mais conhecimento e a partir das possibilidades infinitas que lhes são oferecidas por Mefisto, deseja conquistar a bela Margarete. No entanto, ele acaba se envolvendo em uma briga e mata o irmão da jovem, o que acaba sendo um grande empecilho para seu relacionamento com ela. Após esses eventos, ele conta com a ajuda de Mefisto para fazer Margarete ceder às suas investidas. Em troca, o agiota lhe exige aquele que seria seu bem mais valioso, sua alma.


Amparado pelo roteiro que adaptou junto com Marina Koreneva, Sokúrov abusa de recursos já conhecidos do diretor, como seus planos sequência e as imagens distorcidas, todos utilizados de forma inteligente e coerente com a trama e com o desenvolvimento dos personagens. O diretor aposta em quadros inusitados e em composições que dialogam com obras de pintores alemães como Albrecht Altdorfer, Caspar David Friedrich e Lucas Cranach. Claro que as mais impressionantes ajudaram a compor a sequência de abertura, criada em computação gráfica e que traz a vila onde Fausto reside vista de cima e a "Fonte da Juventude", na qual o cineasta mostra o primeiro encontro entre Fausto e Margarete, intermediado por Mefisto.

Todo o trabalho de Sokúrov vem sustentado pela impecável fotografia de Bruno Delbonnel, que privilegia as referências estéticas das pinturas clássicas alemãs e utiliza sabiamente a luz e os tons pastéis a favor dos sentimentos e percepções do protagonista. O longa também conta com desempenhos dedicados do alemão Johannes Zeiler, que sabe trabalhar muito bem com o sinismo "involuntário" de Fausto, e Isolda Dychauk, a doce Margarete que acaba sendo jogada às feras. Mas o trabalho mais impressionante talvez seja o de Anton Adasinsky, ator russo que compõe um instigante e asqueroso Mefisto, trabalhando muito bem com a expressão corporal e a tonalidade da voz do escorregadio agiota da adaptação.


Revoluções no cinema são recebidas com certo incômodo. Não há rompimento de padrões sem uma instantânea rejeição a novos formatos e isso certamente acontecerá com o público em Fausto, principalmente com um público cada vez mais acomodado com linearidades narrativas e respostas prontas no cinema. Também não há ainda como mensurar que tipo de transformações esse cinema de Sokúrov trará nos próximos anos. Isso só o tempo revelará.

O que pode ser dito é que o filme explora  como nenhum outro as potencialidades semióticas da sétima arte e ousa em determinadas subversões técnicas. Sokúrov eleva sua ambição à enésima potência quando conclui sua quadrilogia - após analisar os meandros do poder com personagens como Hitler, Lênin e Hiroshito - afirmando que o homem, por sua incontrolável cobiça, não mede esforços em seus objetivos e é irresponsável, não assumindo a responsabilidade pelos atos que mesmo provoca. Em vez disso, prefere atribuir a culpa a forças ocultas - o diabo é apenas uma de suas representações. Na verdade, o Mefisto é apenas a projeção do nosso lado mais obscuro. Asqueroso, covarde, mesquinho, promíscuo, humano.
  


Faust, 2011. Dir.: Aleksandr Sokúrov. Roteiro: Aleksandr Sokúrov e Marina Koreneva. Elenco: Johannes Zeiler, Anton Adasinsky, Isolda Dychauk, Georg Friedrich, Hanna Schygulla, Antje Lewald, Florian Bruckner. 140 min. Imovision.

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Chovendo Sapos: A causa de todos os males
A causa de todos os males
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