Reflexões, com spoilers, sobre Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge.
Agora vamos às revelações de Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge e seu corajoso e dúbio desfecho. Vamos à primeira revelação, aquela que envolve os personagens de Marion Cotillard e Tom Hardy, respectivamente Talia al Ghul e Bane, e a prisão subterrânea, uma trama que tem ligação direta com o passado do personagem de Liam Neeson, Ra's al Ghul, em Batman Begins. Muita gente achou forçada esta conexão encontrada por Nolan em Ressurge, mas além da personagem de Cotillard existir no universo DC (Talia é filha do vilão, segue o mesmo código de conduta do pai e já se envolveu amorosamente com Wayne), o retorno da Liga das Sombras no terceiro capítulo da trilogia é plausível com a proposta de construção do mito que descreverei mais adiante. Com a Liga das Sombras, Wayne aprendeu as bases para criar o Batman e formar o mito em torno dele. E assim como fez com o Homem-Morcego, a Liga das Sombras perpetua um mito por gerações com o intuito de destruir civilizações que na visão deles representam a perpetuação do que existe de pior na humanidade. Isso é explicado em Batman Begins e é importante para que não seja dito por aí que as motivações de Talia e Bane em destruir Gotham City são superficiais. A Liga das Sombras procura destruir as civilizações (o personagem de Ken Watanabe em Begins cita Constantinópola e Roma, por exemplo) através de várias frentes, econômica e moralmente, por exemplo. Esse propósito do grupo dialoga com a criação do mito e a passagem de seu legado, que explicarei mais adiante.
Contudo, é triste constatar que a interpretação de Cotillard é um dos pontos fracos do filme - não sua história e a forma com que a personagem entra e adere à trama, como escrevi no primeiro post. Trata-se de um dos desempenhos mais relaxados da carreira da atriz, e digo isso com pesar porque a francesa é sempre muito atenta aos seus personagens, retratando-os com uma humanidade ímpar. Acontece que, essencialmente, Talia é uma personagem dúbia e mesmo que tenha simulado a identidade de Miranda Tate tão bem, não traz vestígio algum das verdadeiras intenções em seus atos como a executiva (ninguém finge tão bem). O desleixo talvez tenha ocorrido por ter sido uma escalação conturbada. Após trabalhar com a atriz em A Origem, Nolan queria Cotillard em Ressurge, só não contava com a gravidez da atriz. O diretor adaptou o cronograma de filmagens à vida pessoal de Cotillard, ao invés de prosseguir e chamar outra que de fato pudesse se comprometer com o papel da forma como deveria ter sido feito. Contudo, temos o lado bom das coisas, quando Bane tem revelada sua trágica origem, suas motivações ganham novos - e melhores- contornos e é comovente acompanhar no terceiro ato sua reação diante da revelação de Talia a Batman. Tudo, é claro, graças à excelente interpretação de Tom Hardy.
Chegamos à situação mais emblemática de Ressurge, seu desfecho. Toda a trajetória do Batman nas mãos de Christopher Nolan teve como norte a consciência do cineasta de que deveria contar uma história realista, pessimista e centrada em Bruce Wayne, algo que nunca ocorreu nos filmes anteriores do personagem. E por mais que tentem me convencer de que O Cavaleiro das Trevas é um filme sobre o Coringa, rebato.O Cavaleiro das Trevas é uma história da descoberta da natureza da identidade do próprio Bruce Wayne, o Coringa é um instrumento para deflagrar a verdadeira natureza do personagem, testá-lo, e isso é denunciado no desfecho do longa através do sacrifício de Batman em prol da manutenção da imagem Harvey Dent como o verdadeiro herói de Gotham.
Portanto, ao decidir encerrar seu filme, Nolan quis dar uma redenção ao personagem apoiando-se na ideia da formação do mito que foi desenvolvida em Batman Begins. Batman é imortal e seu legado pode se perpetuar independente do destino de Bruce Wayne, abandonar o uniforme e viver uma vida normal ao lado de Selina Kyle na Itália ou sacrificar sua própria vida por Gotham. As duas opções de desfechos representam a libertação de Bruce da sua própria fonte de obsessão, Gotham City e o Batman.
Como Alfred alerta Bruce no primeiro ato do longa, caso Wayne continue a intervir em Gotham como Batman pode terminar com sua própria vida. E como carregar uma vida dupla torna-se um verdadeiro fardo para o personagem, a coexistência de Bruce Wayne e Batman já não é mais sustentada por ele. Ainda assim, o personagem tem plena consciência de que Gotham precisa do Batman, afinal, "ele é o 'herói' que Gotham precisa" (fala de Gordon em O Cavaleiro das Trevas), deixando seu legado para Blake, que no final do filme revela-se como a versão Christopher Nolan do Robin. O personagem continua como um órfão que cultiva uma admiração pelo Batman, mas não trabalha em um circo e não veste um uniforme como o Homem-Morcego. Na verdade, o desfecho do filme dá a entender que ele é o escolhido por Wayne para dar continuidade ao seu legado. Afinal, Batman é imortal, Bruce Wayne não.
Prefiro acreditar que Wayne tenha morrido no final de Ressurge. A cena em Florença representa as expectativas do próprio Alfred para Bruce: bem longe dos fantasmas de seu passado e formando uma família com sua esposa. Wayne já foi consumido demais por suas próprias obsessões para conseguir levar uma vida fora de Gotham City e distante do uniforme do Homem-Morcego , deixando seu legado para outro, uma hipótese que só enxergo com a morte do próprio Wayne. Também não acredito que Selina Kyle seja o tipo de mulher que se conformaria com uma vida mais tranquila ao lado de Bruce. Além disso, fica evidente que a perspectiva daquele momento é a de Alfred. Assim, a hipótese de que Christopher Nolan tenha optado por matar seu protagonista em Ressurge me parece mais coerente, sobretudo se pensarmos que, durante toda a trilogia, Nolan sempre reforçou o caráter humano de Wayne. Portanto, nada mais simbólico para um Bruce Wayne de carne e osso do que a constatação de sua morte. Mas nada impede que o desfecho otimista com Bruce e Selina juntos seja uma interpretação possível. Afinal, Alfred viu muito pouco Selina ao longo do filme para associá-la instantaneamente a uma possível companheira de Bruce em uma projeção pessoal e uma das cenas do final do filme traz Lucius Fox descobrindo que Wayne conseguiu fazer um piloto automático para o Morcego. Então, ainda que prefira a primeira versão, a segunda também me parece muito plausível.
E, voltando a Batman Begins, ao idealizar Batman, Bruce Wayne quer criar algo maior que um justiceiro, uma lenda, algo maior que o próprio Bruce Wayne. Assim, como última hipótese, deixa seu legado para quem acredita que possa carregá-lo, o policial Blake, vivido por Joseph Gordon-Levitt, que ganha as orientações do próprio Wayne para encontrar a batcaverna. E, como no universo realista de Batman criado por Nolan nunca teve espaço para um menino prodígio como o conhecemos, ele viria na forma de um sucessor para carregar a identidade do mito Batman, atingindo assim o objetivo de Wayne com o herói, torná-lo imortal. Robin, portanto, seria um sucessor de Wayne como Batman e aqui faz todo sentido a sequência em que Gordon restaura o batsinal.
E, voltando a Batman Begins, ao idealizar Batman, Bruce Wayne quer criar algo maior que um justiceiro, uma lenda, algo maior que o próprio Bruce Wayne. Assim, como última hipótese, deixa seu legado para quem acredita que possa carregá-lo, o policial Blake, vivido por Joseph Gordon-Levitt, que ganha as orientações do próprio Wayne para encontrar a batcaverna. E, como no universo realista de Batman criado por Nolan nunca teve espaço para um menino prodígio como o conhecemos, ele viria na forma de um sucessor para carregar a identidade do mito Batman, atingindo assim o objetivo de Wayne com o herói, torná-lo imortal. Robin, portanto, seria um sucessor de Wayne como Batman e aqui faz todo sentido a sequência em que Gordon restaura o batsinal.
É preciso enaltecer a coragem de Christopher Nolan que, já inserido no contexto hollywoodiano, consegue conferir um final aberto a múltiplas interpretações e que dialogue com tantos temas complexos. A maioria dos cineastas prefere fugir de maiores complicações e oferecem respostas mastigadas ao espectador nesse tipo de produto. Nolan subverte expectativas e mais uma vez faz a plateia refletir no gênero, explorando um potencial inesgotável que, com pouquíssima frequência, surge nesse nível de coragem e maturidade.
Haverá uma continuação para Ressurge? Não sei, difícil pensar em um diretor dando continuidade ao trabalho de Nolan, mesmo com Blake, personagem de Joseph Gordon-Levitt, assumindo o traje de Batman ou outro símbolo qualquer. Agora, se me perguntarem se a Warner tem pretensões de fazer um novo filme do personagem com um outro diretor e uma nova proposta, minha resposta vai ser positiva. Batman é o personagem mais rentável no universo das adaptações de HQs para o cinema e, a julgar pelos números conquistados por esse aqui, não é difícil que daqui há algum tempo surja um outro diretor que reimagine esse universo. Mas Christopher Nolan de volta? Acho muito improvável. A trilogia foi uma oportunidade de Nolan conseguir status para realizar projetos mais autorais, como foi A Origem, que lhe deu livre acesso na Warner para fazer o que quiser e que existiu graças ao louros colhidos com O Cavaleiro das Trevas e Batman Begins. Vejo, pelos próximos anos, Nolan se dedicando a projetos mais autorais.
De qualquer forma, fica registrado aqui meu depoimento. Batman é meu ídolo desde pequeno, foi meu mito de infância. O conheci no cinema com Tim Burton, acompanhei a série animada de televisão e colecionava alguns de seus gibis durante boa parte de minha vida. Como tantos, vi um dos meus personagens preferidos cair em desgraça as arbitrariedades dos dois fatídicos filmes de Joel Schumacher, Batman Eternamente e,principalmente, Batman & Robin. Após a sessão de Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge, quando me dei conta do ciclo criado com tanto cuidado e esmero por Christopher Nolan, desde Batman Begins em 2005, me senti recompensado e agradecido pela revitalização do personagem feita por este brilhante cineasta de nossa geração . Nolan contornou situações limítrofes na trilogia inteira, como a crise de credibilidade do Batman (em Batman Begins), a expectativa de aumentar as ambições e as cobranças em torno da superação de um trabalho anterior (Batman - O Cavaleiro das Trevas) e a morte de um amigo e membro fundamental de sua equipe (Heath Ledger, o que certamente fez alterar boa parte dos planos dele para Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge). Mas tal qual Bruce Wayne fez com Batman, Nolan construiu os alicerces sólidos de um mito que, perdurará por anos e anos, ainda que seu legado seja assumido por outro, como Wayne ao deixar seu legado para Blake. Missão cumprida para ele e nós o respeitamos como realizador e por ter agarrado a grande oportunidade de sua carreira ao assumir a trilogia O Cavaleiro das Trevas.
The Dark Knight Rises, 2012. Dir.: Christopher Nolan. Roteiro: Christopher Nolan e Jonathan Nolan. Elenco: Christian Bale, Michael Caine, Anne Hathaway, Tom Hardy, Marion Cotillard, Gary Oldman, Joseph Gordon-Levitt, Morgan Freeman, Ben Mendelsohn, Matthew Modine. 164 min. Warner.
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