Precisamos falar sobre Kevin

Tilda Swinton e o retrato da culpa materna em Precisamos Falar sobre Kevin.
Ao longo de nossa existĂȘncia aprendemos a identificar a maternidade como um estado de graça, uma aptidĂŁo natural de toda mulher. Sempre suspeitei que toda esta construção fosse emaranhada de superficialidade, hipocrisia e machismo. Enfim, um determinismo que o mundo em que vivemos jĂĄ nĂŁo suporta mais. No entanto, esta mesma construção superficial proporciona um aspecto, este sim, inescapĂĄvel da maternidade: a culpa. As matriarcas estĂŁo sempre se sentindo culpadas pelos atos e destino de seus filhos. Quando suas crias metem os pĂ©s pelas mĂŁos, a primeira pergunta que lhes vĂȘm Ă  mente Ă©: "Onde eu errei?". Esta culpa advĂ©m da frustração que as mĂŁes tĂȘm ao nĂŁo corresponder Ă  figura idealizada de matriarca. O quadro se complica ainda mais se pensarmos que a maioria das mulheres embarcam nessa jornada sem ao menos parar para pensar se deseja colocar uma criança no mundo. Por descuido ou por pressĂŁo das convençÔes sociais algumas dessas mulheres tonam-se mĂŁes, mas nem por isso sĂŁo as Ășnicas responsĂĄveis pelo que seus filhos se tornam. Muitas vezes o mau nĂŁo se origina da criação.

Precisamos Falar sobre Kevin, baseado no livro homĂŽnimo escrito por Lionel Shriver, trata sobre uma dessas mulheres. Personificada magistralmente por Tilda Swinton, Eva jamais pensou em ser mĂŁe, engravidou por um acaso e agora tem que criar seu primogĂȘnito, Kevin. A relação dos dois sempre foi conturbada desde o inĂ­cio jĂĄ que, desde os primeiros anos, Kevin se mostra uma criança indisciplinada e disposta a testar o nervos de sua mĂŁe. Na adolescĂȘncia, o garoto começa a revelar uma Ă­ndole perversa, o que aterrorizar Eva, que nunca consegue estreitar os laços com o garoto. Assim, ela passa a cultivar uma frustração por nĂŁo ter conseguido estabelecer vĂ­nculos com Kevin e por nĂŁo tĂȘ-lo transformado em uma pessoa melhor. A culpa de Eva cresce ainda mais quando Kevin se envolve em um massacre escolar em seu colĂ©gio, nos moldes do ocorrido em Columbine.

O mais interessante no roteiro de Lynne Ramsay, tambĂ©m diretora, e Rory Kinnear Ă© estabelecer gradualmente para o espectador que Eva nĂŁo tem culpa alguma pelos caminhos tortuosos escolhidos pelo seu filho. Talvez a maior culpa da personagem tenha sido se tornar mĂŁe, algo que nunca esteve em seus planos. A culpa materna pela tragĂ©dia causada por Kevin existe somente para Eva e para os demais personagens da trama. Ramsay nos revela o retrato de um garoto com evidentes distĂșrbios psiquiĂĄtricos que fogem aos domĂ­nios de Eva. No entanto, Eva cria uma relação obsessiva que a torna refĂ©m do destino daquele menino. A personagem carrega as obrigaçÔes da maternidade e de suportar os julgamentos pelo comportamento do filho como uma penitĂȘncia por sua inabilidade com Kevin desde a infĂąncia.

AlĂ©m do roteiro psicologicamente maduro e interessante em suas escolhas narrativas, Lynne Ramsay Ă© responsĂĄvel por um trabalho notĂĄvel na direção deste filme, oferecendo-nos a perspectiva de Eva para os acontecimentos, seja em closes nos gestos dos personagens ou em elementos da cena (como o destaque que dĂĄ Ă s atitudes de Kevin que mais irritam sua mĂŁe ou Ă s cores vermelhas em cena, por exemplo), seja pela estrutura nĂŁo linear do filme, fragmentos passados da personagem que a torturam constantemente. A diretora tambĂ©m conta com excelentes atores, a começar por Tilda Swinton, intĂ©rprete da protagonista. A atriz consegue dimensionar o pesadelo diĂĄrio de Eva, uma mulher que surge sempre apĂĄtica e alerta no ambiente domĂ©stico. No segundo momento, apĂłs a tragĂ©dia, Eva mostra-se cansada e imersa em solidĂŁo, distante e envergonhada. Ezra Miller, por sua vez, ator que dĂĄ vida a Kevin quando adolescente, vive um garoto completamente psicĂłtico, provocador e ameaçador, uma cabeça doentia. TambĂ©m pontua o filme com uma Ăłtima performance o garoto Jasper Newell, que interpreta Kevin quando criança.

Precisamos Falar sobre Kevin Ă© uma alegoria de um outro lado da maternidade, um aspecto oculto, silenciado pelo temor que a sociedade tem de desmistificar os estereĂłtipos moldados para a mulher. À sua maneira, Eva tornou-se refĂ©m nĂŁo do filho, mas da culpa que lhe foi atribuĂ­da pelo monstro que Kevin se tornou. Lynne Ramsay faz um filme assustador que oferece uma perspectiva pertinente e pouco explorada do universo materno. Esta perspectiva Ă© ampliada atravĂ©s dos desempenhos arrasadores de Tilda Swinton e Ezra Miller. Precisamos Falar sobre Kevin Ă© provocador e devastador em seus efeitos como obra cinematogrĂĄfica e como testemunho de que nem sempre os caminhos da maternidade sĂŁo repletos de alegrias e sentimentos nobres. E nĂŁo hĂĄ embaraço algum para a plateia quando se chega a esta conclusĂŁo.



We need to talk about Kevin, 2011. Dir.: Lynne Ramsay. Roteiro: Lynne Ramsay e Rory Kinnear. Elenco: Tilda Swinton, John C.Reilly, Ezra Miller, Jasper Newell, Rock Duer, Ashley Gerasimovich, Siobhan Fallon, Alex Manette, Kenneth Franklin. 112 min. Paris Filmes. 

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Chovendo Sapos: Precisamos falar sobre Kevin
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